Hélder Cunha

Hélder Cunha

Enológo, produtor e consultor.


Um excesso que ninguém quer ver

Num país onde o vinho faz parte do território, da paisagem e da cultura, há hoje milhões de litros que ninguém quer comprar. Os depósitos das adegas estão a abarrotar, ao mesmo tempo que vemos nos lineares dos supermercados vinhos anunciados abaixo de 2€. Esta imagem, que parece absurda à primeira vista, é o reflexo direto de uma política comercial orientada exclusivamente para o preço, sem olhar ao impacto estrutural que isso tem para o setor.

Mais inquietante ainda: Portugal não produz vinho suficiente para satisfazer o consumo interno e as suas necessidades de exportação, e por isso importa — mas em volumes desproporcionados — vinhos de países com excedentes crónicos e custos de produção mais baixos. Essas importações não servem para colmatar falhas estruturais, mas sim para alimentar uma lógica de preço mínimo, que alimenta campanhas promocionais em detrimento do valor real do produto.

Esta contradição está a gerar um excesso estrutural de vinho em território nacional, que leva à estagnação do mercado, à necessidade de medidas como as destilação de crise já feitas e à perda progressiva de rentabilidade dos produtores. A pressão sobre o preço da uva agrava-se, e com ela, o desinteresse pela manutenção da atividade vitícola em muitas regiões.

O problema deixou de ser apenas económico — é também cultural e estratégico. A persistência nesta lógica compromete a sustentabilidade de todo o ecossistema vitivinícola português: desde o viticultor que já não cobre custos, até a regiões inteiras que não conseguem valorizar a sua produção e identidade.

O verdadeiro custo de um litro de vinho não pode ser medido apenas em euros. Ele inclui o tempo de quem cuida da vinha, o equilíbrio dos solos, a preservação da paisagem, o património agrícola e cultural de cada território. Ignorar isto é hipotecar o futuro da viticultura portuguesa em troca de uma margem imediata que, no fundo, não beneficia ninguém a longo prazo.


1. O retrato atual: stocks, produção e importações

  • A produção nacional de 2024 caiu para cerca de 6,9 milhões de hectolitros (–8 % face a 2023). Segundo o relatório da OIV, a produção de vinho em Portugal de 2024 foi de 6,9 milhões de hectolitros, o que representa uma queda de aproximadamente 8 % em relação a 2023. O relatório europeu da Copa‑Cogeca confirma essa variação.
  • Apesar das dificuldades, as vendas de vinho português em 2024 registaram sinais positivos: foram exportados 3,29 milhões de hectolitros e o consumo interno cresceu 3,6 % para 5,6 M hL. Ainda assim, a produção (6,9 M hL) continua abaixo das necessidades totais de vendas (cerca de 8,9 M hL), o que reforça a contradição entre o excesso de stocks e o desequilíbrio de mercado.
  • Os stocks de vinho nas adegas ultrapassam os 12,8 milhões de hectolitros. Embora não haja estatísticas oficiais precisas, diversos artigos confirmam que os depósitos das adegas chegam aos 12 a 13 milhões de hectolitros. Fenadegas e líderes regionais apontam para esse nível preocupante, frequentemente acompanhado por pedidos de destilação de crise .
  • Portugal importou 2,97 milhões de hectolitros em 2023 — quase 44 % da sua produção anual. O relatório da OIV 2023 refere que Portugal importou cerca de 3,0 milhões de hectolitros, correspondendo a um aumento de 3,3 % face a 2022 . Esse valor representa cerca de 43,8 % da produção nacional.
  • Estima-se um assim um excedente acumulado de cerca de 2M hL por escoar que soma aos 12,8 M hL em existências. Fontes ligadas a entidades do setor, nomeadamente a Fenadegas, indicam um excedente potencial na ordem dos 1,22 a 2 M hL. Para muitos produtores, este excedente é uma realidade grave que dificulta a vindima e obriga a decisões em desespero.

Os números não mentem: importamos vinho barato para manter os lineares cheios, vendido como se fosse nosso, enquanto os produtores portugueses não conseguem escoar o que produzem. Esta distorção coloca em causa toda a sustentabilidade económica do setor. Os dados revelam a necessidade urgente de intervenção coordenada no âmbito de regulação, quotas e novos modelos de valor.


2. A face invisível da guerra de preços

O consumidor português foi habituado a ver vinho como um produto promocional, com rótulos de fantasia e preços abaixo do custo de produção. Mas há custos reais que não aparecem no talão:

  • Viticultores com margens negativas.
  • Regiões inteiras sem capacidade de escoamento.
  • Castas locais a serem substituídas por uvas de rendimento fácil.
  • A marca Portugal a perder valor face ao exterior.

Esta lógica de curto prazo está a comprometer a capacidade de manter jovens na atividade, de investir na vinha e de garantir uma produção sustentável, diferenciada e com identidade.

Mas há esperança. Muitos produtores em Portugal estão a reagir, com projetos que voltam a valorizar o terroir, as castas autóctones e os métodos de cultivo que respeitam o solo e o tempo. As novas gerações de enólogos e viticultores não estão apenas a tentar sobreviver — estão a reinventar o setor com criatividade, coragem e sentido de missão.

Cada vez mais consumidores procuram saber de onde vem o vinho, quem o faz e como é feito. Há espaço para reconectar o vinho português com o seu valor real — mas isso exige um esforço coletivo, desde a vinha até ao copo.

Precisamos de voltar a contar as histórias certas. O vinho português não é só competitivo — é autêntico. E a autenticidade, quando bem comunicada, tem um valor que nenhum desconto pode substituir.

Há um futuro possível onde o preço justo e o orgulho nacional andam de mãos dadas. Onde as garrafas não são descartáveis, mas mensageiras de paisagem, cultura e dignidade. Cabe-nos a todos fazer parte desse movimento.


3. Importações desreguladas: o cavalo de Troia da vitivinicultura

Grande parte das importações chega a preços bem abaixo de 0,50€/litro, proveniente de países com excedentes estruturais como Espanha, Chile ou Itália. São vinhos produzidos em volumes massivos, muitas vezes com apoios estatais e modelos logísticos otimizados para preço, não para valor. Quando entram em Portugal, são engarrafados, rotulados com nomes neutros e posicionados de forma a confundirem-se com vinhos nacionais.

Esta prática, além de injusta, desequilibra o mercado de forma estrutural. Cria uma concorrência desleal dentro de portas: o produtor português compete com vinhos que não seguem as mesmas regras, nem enfrentam os mesmos custos. As CVR’s veem os seus indicadores comprometidos, ao mesmo tempo que perdem poder para regular verdadeiramente a origem e a autenticidade do vinho que chega ao consumidor.

Ainda mais preocupante é o impacto na perceção externa. Quando o consumidor, em Portugal ou fora, encontra no mercado um "vinho português" barato e sem identidade, esse produto não só prejudica os produtores nacionais — mas também fragiliza a marca Portugal como um todo. Num setor onde a valorização da origem é central, permitir este tipo de prática é enfraquecer o coração do posicionamento estratégico do país.

Mas há caminhos possíveis. A rastreabilidade digital, o reforço do selo de origem e a transparência na rotulagem são ferramentas ao alcance das autoridades e do setor. Além disso, há cada vez mais consumidores sensíveis a essa transparência. Mostrar com clareza o que é nosso, como foi feito e por quem, pode ser uma das formas mais eficazes de restituir confiança ao mercado — e dignidade à produção portuguesa.


4. Proteger o elo mais frágil: o viticultor

Quem sofre mais com esta distorção do mercado é quem menos pode reagir: o viticultor.

Sem um preço justo pela uva, não há investimento, não há reestruturação, não há qualidade possível. Muitos acabam por abandonar a atividade, vender à pressa ou cair na informalidade. O território fica mais pobre, a paisagem mais vulnerável, o futuro mais incerto. A falta de rentabilidade desmotiva novas gerações a continuarem a tradição familiar, quebra-se a continuidade do saber-fazer e desaparecem castas, práticas e vinhas históricas que levaram séculos a afirmar-se.

Num país onde o vinho é cultura e paisagem, ignorar o viticultor é comprometer a alma do setor. As decisões sobre estratégia, comunicação e promoção não podem ser feitas apenas em gabinetes. Precisam de ser ancoradas na realidade de quem trabalha a terra, ano após ano, lidando com as incertezas do clima, dos custos e do mercado.

Mas há sinais de esperança. Em várias regiões, produtores estão a reorganizar-se, criando modelos de partilha de risco e valorização do produto na origem. Projetos inovadores de certificação da uva, prémios de sustentabilidade e canais curtos de comercialização estão a emergir. Em muitos casos, o consumidor responde positivamente — desde que lhe seja contada a história e demonstrado o valor real por detrás da garrafa.

Valorizar o viticultor não é caridade: é estratégia. Significa garantir matéria-prima de qualidade, identidade regional e capacidade de futuro. Significa construir um modelo de vinho português resiliente, justo e com margem para crescer — sem sacrificar quem o torna possível.

É aqui que o setor deve recentrar a discussão: o preço justo começa na uva, não na prateleira.


5. Uma resposta integrada e estratégica é urgente

Esta situação exige uma intervenção coordenada e determinada de todo o setor:

  • Governo e IVV: criar instrumentos de controlo e regulação das importações, e distinguir claramente o que é vinho nacional.
  • CVR’s: reforçar mecanismos de certificação e rastreabilidade, ajustando quotas e licenças à realidade atual.
  • ViniPortugal: deixar de comunicar o vinho português como um produto genérico e reposicionar a marca com foco no valor, no território e na autenticidade, ligando-o à gastronomia.
  • Distribuição: assumir o papel de parceiro e não de predador, valorizando vinhos com origem e propósito.

O objetivo tem de ser claro e comum: proteger o património vitivinícola nacional e adaptá-lo às leis de mercado essenciais à sua sustentabilidade económica — mas assegurando que o jogo é limpo, com regras claras e iguais para todos os intervenientes.


Tem de se valorizar o vinho português

Estamos a viver um momento decisivo. Se o setor continuar a correr atrás do preço mais baixo, em vez de construir valor, vai acabar por destruir o que torna o vinho português único: o seu território, a sua diversidade, a sua alma. Mas é neste ponto crítico que reside também uma oportunidade histórica para reformular o sistema, recentrar prioridades e restruturar o prestígio do vinho nacional.

A solução não está em fechar fronteiras, mas em abrir os olhos — e os canais de diálogo entre os vários agentes do setor. O viticultor, o enólogo, o distribuidor, o retalhista e o consumidor têm de ser parte de uma nova visão de futuro. Uma visão onde o valor da origem, da identidade e da autenticidade é defendido com o mesmo empenho com que se persegue a competitividade.

É preciso definir regras claras que protejam a produção nacional sem cair no protecionismo estéril. Regras que valorizem quem produz com responsabilidade, quem investe na terra, quem aposta na sustentabilidade e quem se recusa a seguir caminhos fáceis que esvaziam o vinho do seu conteúdo cultural e humano.

A educação do consumidor será central. Mostrar porque uma garrafa de 6€, feita por um produtor que respeita a terra, tem mais valor do que um vinho sem rosto vendido em promoção por 2€. Ensinar a ver para além do preço, a reconhecer o território no copo, e a valorizar o esforço de quem o tornou possível.

Porque se o vinho nacional não for defendido hoje, amanhã poderá já não ter quem o produza. Mas se for valorizado com inteligência, visão e coragem, ainda poderá liderar — e não apenas resistir — na próxima década.